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Adimplemento substancial e sua aplicação prática

Por Ricardo Key S. Watanabe - 29/04/2022

Segundo o art. 475 do Código Civil, "a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". 


Ou seja, via de regra, o inadimplemento de uma obrigação gera ao credor o direito subjetivo de resolver o contrato. 


No entanto, essa faculdade não é absoluta e pode ser relativizada a depender do caso, sobretudo em situações de notável desequilíbrio entre os contratantes (como em relações de consumo ou de superendividamento, por exemplo). 


Nessa perspectiva, desenvolveu-se a teoria do adimplemento substancial, fruto da construção doutrinária e jurisprudencial com intuito de conferir maior estabilidade jurídica às relações contratuais frente a situações excepcionais de descumprimento de obrigação e, na mesma medida, impedir o uso desproporcional do direito de resolução por parte do credor caso o devedor já tenha cumprido relevante parcela do contrato antes da instauração da situação de inadimplência. 


A ideia é priorizar a preservação da avença em observância aos princípios da boa-fé e da função social do contrato, pois, em determinadas circunstâncias, a relevância social do contrato e da relação obrigacional há de prevalecer sobre dada situação extraordinária de descumprimento contratual que se mostre insignificante.


A aplicação dessa teoria pressupõe uma análise global do contrato, da sua natureza e sua finalidade social, e do comportamento dos contratantes ao longo da relação contratual, de modo a serem apreciadas as causas, a real extensão do inadimplemento (relativamente ao todo originalmente contratado) e a boa-fé dos contratantes. 


Obviamente, não se trata de chancelar a inadimplência deliberada, nem de proteger o devedor contumaz em prejuízo do credor. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a aplicação dessa teoria deve ser avaliada casuisticamente e se condiciona à boa-fé do devedor e ao montante já pago, que necessariamente há de atingir patamar proporcionalmente relevante em relação à dívida. Observados tais pressupostos, admite-se o afastamento da medida extrema da resolução contratual, sem prejuízo do direito do credor de buscar a satisfação de seu crédito por outros meios.


O STJ já decidiu pela aplicação dessa teoria em diversos tipos de contrato. Vale citar, como exemplo, o de seguro-saúde, sobre o qual se decidiu que “a indenização pelos gastos com internação constitui-se em obrigação principal da seguradora”, de modo que “o mero atraso no pagamento de uma parcela do prêmio não se equipara ao inadimplemento total do segurado, motivo pelo qual não pode acarretar a desobrigação da outra parte” (REsp 293.722).


Por outro lado, segundo a jurisprudência do STJ, essa teoria não se aplica a situações específicas a depender da natureza do contrato e da obrigação. 


Por exemplo, é descabido cogitar a irrelevância do inadimplemento da obrigação alimentar (como se decidiu no HC 536.544/SP), pois se trata de bem jurídico indisponível não atrelado a critérios puramente quantitativos e voltado à satisfação das necessidades básicas e de subsistência do credor. Tão relevante e grave é o inadimplemento nesse particular que a própria Constituição permite até a prisão civil do devedor em caso de não pagamento de qualquer parcela alimentar.


Por outro lado, o STJ também já decidiu que a teoria do adimplemento substancial não se aplica a contratos de financiamento de veículo com alienação fiduciária, regidos pelo Decreto-Lei 911/1969, de modo a não obstar a busca e apreensão do veículo mesmo em caso de inadimplemento de ínfima parcela da obrigação. Segundo o entendimento daquela Corte, “o decreto-lei é expresso ao exigir a quitação integral do débito como condição imprescindível para que o bem alienado fiduciariamente seja restituído livre de ônus ao devedor” (REsp 1.622.555/MG).


Enfim, a aplicação da teoria do adimplemento substancial há de ser analisada em cada caso segundo critérios de razoabilidade, proporcionalidade e bom senso, de modo a serem preservadas a boa-fé dos contratantes e a função social do contrato.

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