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Artigos e notícias

Lei do superendividamento

Ricardo Key Sakaguti Watanabe - 06/08/2021

1. Noções gerais da lei

           

Após anos de debates no âmbito do Poder Legislativo, e com apoio de renomados juristas, foi sancionada em 1º de julho de 2021 a lei nº 14.181/2021, conhecida como “lei do superendividamento”.

Referida norma foi concebida com o intuito de solucionar o fenômeno social, jurídico e econômico do endividamento desmedido “capaz de gerar a impossibilidade do consumidor, pessoa física, de boa-fé, em pagar o conjunto de suas dívidas de consumo vencidas ou a vencer, sem prejuízo grave do sustento próprio ou de sua família[1].

É notório que a facilidade de acesso ao crédito, embora possa parecer benéfica e democrática, nos últimos anos favoreceu a instauração de um ambiente propício a práticas irresponsáveis por fornecedores, que levaram consumidores a contraírem dívidas impagáveis (como aquelas decorrentes do popular “efeito bola de neve”, em que novas dívidas são contraídas para pagar outras, num círculo vicioso) em prejuízo de sua própria subsistência, num cenário de grave crise econômica e social.

Nesse contexto, foram inseridos diversos dispositivos no Código de Defesa do Consumidor – CDC (lei nº 8.078/90), com o intuito de “aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento”.

O novo inciso XI do art. 6º do CDC retrata a ideia geral da lei, ao estabelecer dentre os direitos básicos do consumidor “a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas”.

 

2. Caracterização do superendividamento

 

O superendividamento é definido como “a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial” (art. 54-A, §1º, do CDC). E a lei limita sua abrangência a situações envolvendo apenas pessoas físicas.

“Dívidas de consumo” são “quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada” (§2º do art. 54-A). Ficam excluídas da incidência da norma as dívidas “contraídas mediante fraude ou má-fé” ou “com o propósito de não realizar o pagamento”, bem como referentes a “produtos e serviços de luxo de alto valor” (§3º).

Ao se referir ao “mínimo existencial”, como parâmetro para a caracterização do endividamento nocivo, a lei se ampara no conceito do patrimônio mínimo necessário à subsistência do consumidor e no princípio constitucional da dignidade humana [2]. O intuito, com isso, é evitar que a dívida comprometa o sustento e acarrete a situação de miserabilidade do devedor ou de sua família.

 

3. Medidas de prevenção do superendividamento

 

A lei estabelece medidas de prevenção do superendividamento, dentre as quais merecem destaque aquelas voltadas a assegurar maior transparência na concessão do crédito (previstas no art. 54-B do CDC [3]) e a previsão do art. 54-D, inciso II, segundo o qual “na oferta de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá (...) avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito”.

O objetivo da norma é reprimir a concessão desenfreada e irresponsável de crédito, de modo a conferir maior nível de consciência nas contratações. Além de cumprir o dever de informar o consumidor, de forma clara e transparente, incumbe ao fornecedor avaliar a condição social e a capacidade de discernimento do tomador do crédito. Afinal, na maioria dos casos, uma simples análise prévia do histórico do devedor pode evidenciar que a dívida se tornará impagável [4].

Por mais atrativo e cômodo que possa parecer ao credor, ele não deve estimular o devedor a se endividar irrefletidamente, sobretudo em prejuízo de seu próprio sustento. Isso decorre dos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e do dever anexo de o credor mitigar o seu próprio prejuízo (duty to mitigate the loss) e, num espírito de cooperação, contribuir para que o devedor não aumente sua dívida de forma inviável para sua capacidade de pagamento.

O descumprimento das referidas regras abre a possibilidade de o consumidor pleitear “judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor” (parágrafo único do art. 54-D do CDC).

 

4. Tentativa de conciliação

 

As novas disposições do CDC também estabelecem medidas alternativas de resolução das situações de superendividamento, por meio da conciliação. Foi incluído novo capítulo V no Título III do CDC (que trata da “defesa do consumidor em juízo”) com disposições acerca da possibilidade de o consumidor requerer a instauração de um “processo de repactuação de dívidas”.

Segundo o art. 104-A do CDC, a pedido do consumidor superendividado “o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores (...) na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial”, de forma análoga à recuperação de empresas.

Nessa proposta de plano de pagamento, o devedor poderá propor, dentre as medidas voltadas a facilitar o pagamento da dívida, a “dilação dos prazos de pagamento” e a “redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor”.

A lei prioriza essa busca pela negociação em audiência conciliatória, ao estabelecer que o não comparecimento injustificado do credor lhe acarretará ônus como “suspensão da exigibilidade do débito”, “interrupção dos encargos da mora” e “sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida”, a depender do caso (§2º).

Com a negociação, o consumidor poderá obter sua exclusão de cadastros de inadimplentes e a suspensão (ou extinção) de ações judiciais em curso, mediante o compromisso de se abster de “condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento” (§4º do mesmo artigo).

 

5. Plano judicial compulsório

 

Por fim, a lei assegura que, se não for possível a conciliação com os credores, “o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório” (art. 104-B do CDC).

Nesse cenário, caberá ao juiz (se for o caso, com apoio de um administrador judicial – art. 104-B, §3º, do CDC [5]) definir meios para facilitar o pagamento da dívida, como dilação de prazos (limitado ao máximo de cinco anos para quitação do débito) e redução de encargos, ficando assegurado ao credor receber “no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço” (§ 4º do mesmo artigo).

 

6. Considerações finais

 

Enfim, a análise sobre a caracterização do superendividamento deve ser feita caso a caso, já que a lei a condiciona a conceitos abertos e indeterminados (como, por exemplo, “produtos e serviços de luxo de alto valor” e “mínimo existencial”). Obviamente não haveria como previamente defini-los ou mensurá-los objetivamente nem quantitativamente.

De todo modo, espera-se que a lei venha a beneficiar tantos os consumidores endividados, a quem serão oportunizadas melhores possibilidades de reerguimento e reinserção no mercado de consumo (de forma digna), como os fornecedores, ante a maior probabilidade de satisfação dos créditos mediante realização de operações creditícias conscientes e responsáveis, de modo a favorecer a superação do atual contexto de crise econômica.

[1] Como constou do parecer da Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados durante a tramitação do projeto de lei 3.515/2015

[2]A guarida a essa esfera patrimonial básica acentua a consideração de valores que denotam interesses sociais incidentes sobre as titularidades. Tais valores recaem, ainda que de modo diverso, sobre a posse a propriedade”. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 285.

[3] Art. 54-B. No fornecimento de crédito e na venda a prazo, além das informações obrigatórias previstas no art. 52 deste Código e na legislação aplicável à matéria, o fornecedor ou o intermediário deverá informar o consumidor, prévia e adequadamente, no momento da oferta, sobre:      

I - o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem;     

II - a taxa efetiva mensal de juros, bem como a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento;    

III - o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser, no mínimo, de 2 (dois) dias;

IV - o nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor;     

V - o direito do consumidor à liquidação antecipada e não onerosa do débito, nos termos do § 2º do art. 52 deste Código e da regulamentação em vigor.      

§ 1º As informações referidas no art. 52 deste Código e no caput deste artigo devem constar de forma clara e resumida do próprio contrato, da fatura ou de instrumento apartado, de fácil acesso ao consumidor.   

§ 2º Para efeitos deste Código, o custo efetivo total da operação de crédito ao consumidor consistirá em taxa percentual anual e compreenderá todos os valores cobrados do consumidor, sem prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade reguladora do sistema financeiro.      

§ 3º Sem prejuízo do disposto no art. 37 deste Código, a oferta de crédito ao consumidor e a oferta de venda a prazo, ou a fatura mensal, conforme o caso, devem indicar, no mínimo, o custo efetivo total, o agente financiador e a soma total a pagar, com e sem financiamento. 

[4] Já se percebia esse entendimento no âmbito dos tribunais. Vale citar, a título de exemplo, o seguinte julgado: “Instituição bancária que concede crédito sem averiguação da capacidade econômica do consumidor, contrata sob a égide da temeridade ou alto risco, devendo arcar com os prejuízos daí resultantes. Culpa in iligendo e in vigilando que de forma flagrante e incontroversa qualifica a relação contratual das partes litigantes. Concessão de crédito a quem não tem condições de realizar sua prestação obrigacional, importa em contratação viciada principalmente em razão de simular e induzir em erro o cliente fazendo parecer que terá ele condições de pagamento” (TJ/RS, 23ª C. Cível, rel.  Ana Paula Dalbosco, APC nº 70060010568, j. 25/11/2014).

[5] §3º O juiz poderá nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 (trinta) dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.

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