Textos jurídicos sobre a COVID-19
Mensalidades escolares: há direito a revisão por conta da COVID-19?
* Publicado no site Migalhas - acesse aqui
Por Ricardo Key Sakaguti Watanabe - 27/04/2020
Diante da indefinição geral sobre o retorno das aulas presenciais em todo o país – especula-se para a segunda quinzena de maio ou, ainda, somente para o segundo semestre deste ano – crescem as dúvidas e os questionamentos de estudantes, pais e responsáveis de alunos sobre o dever de pagar integralmente as mensalidades escolares, durante o período de suspensão das atividades de ensino.
O ambiente de incerteza motivou a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça, a publicar a Nota Técnica nº 14/2020 com a recomendação para que “consumidores evitem o pedido de desconto de mensalidades, a fim de não causar um desarranjo nas escolas que já fizeram sua programação anual, o que poderia até impactar o pagamento de salário de professores, aluguel, entre outros”.
E mais: em 01/04/20, sobreveio a Medida Provisória nº 934/20, que, em virtude da pandemia da COVID-19, prevê para os estabelecimentos de ensino básico e as instituições de educação superior a dispensa “em caráter excepcional, da obrigatoriedade de observância ao mínimo de dias de efetivo trabalho” escolar e acadêmico, desde que “observadas as normas a serem editadas pelos respectivos sistemas de ensino”.
Mas as dúvidas persistem diante dos seguintes fatos a considerar: a) as aulas presenciais permanecem suspensas; b) em tese, o calendário escolar será cumprido (se não agora, depois); c) algumas instituições de ensino oferecem a alternativa de ensino à distância; d) em muitos casos, as mensalidades abrangem pagamentos acessórios, não vinculados diretamente à prestação do serviço de ensino (como alimentação, transporte, atividades extracurriculares); e) muitos estudantes, pais e responsáveis de alunos enfrentam dificuldades financeiras em decorrência dos impactos econômicos da crise da COVID-19.
Quanto à prestação dos serviços educacionais, não se vislumbra fundamento para a revisão do valor da mensalidade dada a possibilidade de os serviços virem a ser prestados oportunamente com a mesma qualidade contratada. A obrigação da instituição de ensino permanece hígida e haverá de ser cumprida mediante oferecimento de aulas presenciais após o fim do período de distanciamento social, adequação do calendário escolar e atendimento dos requisitos legais impostos pelo Ministério da Educação (carga horária mínima, observância do conteúdo programático do ano letivo etc.). E o pagamento das mensalidades representa condição sine qua non para o futuro exercício do direito à reposição das aulas.
Lembrando que, na contratação de uma instituição de ensino, o que se contrata é a prestação de serviços educacionais anuais ou semestrais, mediante o respectivo pagamento que pode ser único ou parcelado (daí as mensalidades). Isso, por si, suplanta muitos dos questionamentos de estudantes, pais e responsáveis de alunos baseados na desacertada ideia de que a mensalidade remuneraria os serviços prestados no respectivo mês, pura e simplesmente.
Já a opção de substituição das aulas presenciais pela modalidade de ensino à distância pode implicar alteração objetiva do contrato (a depender das disposições contratuais do caso concreto). Logo, cabe avaliar não só a conveniência, mas, sobretudo, a qualidade e a eficiência dessa alternativa, e sua aptidão para o cumprimento da obrigação assumida pela instituição de ensino (que, também nesse contexto, deverá atender os requisitos impostos pelo Ministério da Educação). Por outro lado, cabe ponderar os impactos econômico-financeiros decorrentes dessa mudança na base objetiva do contrato, o que daria azo à revisão dos valores das mensalidades (caso se verifique diferença de preço entre o ensino à distância e o presencial).
Quanto aos pagamentos acessórios (alimentação, transporte, atividades extracurriculares), parece justificável e conveniente a suspensão da cobrança durante o período da calamidade pública, seja por implicar alteração na base objetiva do contrato, seja com amparo nos princípios da razoabilidade e do não enriquecimento sem causa (se o serviço não é prestado nem reposto não haveria por que pagar por ele). Tanto que isso já vem ocorrendo na prática.
Todavia, cabe ponderar se, de fato, a suspensão do pagamento não gerará prejuízo financeiro à instituição de ensino (por exemplo, se ela, de boa-fé, já tiver adquirido os respectivos materiais e insumos, adiantado o pagamento de custos operacionais, profissionais envolvidos etc.). Lembrando que a crise da COVID-19 caracteriza caso fortuito ou força maior que, em tese (dependendo das disposições contratuais do caso concreto), justificaria a extinção da obrigação sem ônus, pela impossibilidade involuntária de cumprimento (art. 393 do Código Civil).
Por fim, e por maior que seja o clamor provocado pelo estado de calamidade pública oriundo da pandemia da COVID-19, e apesar da notoriedade de seus impactos em setores variados da economia, não se vislumbra direito à suspensão do pagamento ou a revisão dos valores das mensalidades genericamente consideradas, por conta de eventuais dificuldades financeiras enfrentadas pelos estudantes, pais e responsáveis de alunos.
Tais dificuldades não implicam mudança na base objetiva do contrato, mas, quando muito, um sacrifício econômico subjetivo, atinente exclusivamente à situação patrimonial do pagador. Também não caracterizam desequilíbrio intrínseco ao objeto contratado, nem ônus excessivo ao contratante e extrema vantagem para a contratada, de forma significativa, excepcional e impactante a ponto de desequilibrar a base de sustentação da avença.
Nesse contexto, eventuais prejuízos na situação patrimonial subjetiva do pagador, ainda que imprevistos e imprevisíveis, por si não caracterizam desequilíbrio contratual nem excessiva onerosidade da obrigação, de modo a não justificar a revisão do ajuste.
Conforme ensinamento de GUSTAVO TEPEDINO et al, “a verificação da excessiva onerosidade para fins de aplicação das consequências previstas nos artigos 478 e 317 do Código Civil deve ser avaliada focando-se exclusivamente na relação sinalagmática entre as prestações contratuais, não incidindo nas hipóteses em que a dificuldade de adimplemento decorre de fatores externos ao contrato e que não interfiram no seu equilíbrio, como a perda de emprego” (Contratos, força maior, excessiva onerosidade e desequilíbrio patrimonial. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-20/opiniao-efeitos-pandemia-covid-19-relacoes-patrimoniais>. Acesso em 21/04/20).
No entanto, parece conveniente e recomendável que os contratantes voluntariamente busquem soluções alternativas e renegociações de forma individualizada, considerando as peculiaridades do caso concreto, amparadas na boa-fé, no bom senso e para se evitar um mal maior (resolução do contrato, litígio etc.). Tanto que, em situações pontuais de excepcional dificuldade financeira pessoal do pagador, algumas instituições de ensino têm prorrogado vencimentos de mensalidades (total ou parcialmente) ou até oferecido descontos sujeitos a restituição (pagamento) posterior, já que algumas delas têm se favorecido com a redução de custos e benefícios fiscais oriundos da pandemia. Tudo com o intuito de viabilizar uma convergência de interesses, num espírito de solidariedade.
Vale a ressalva: não se questiona que a crise da COVID-19 possa justificar a revisão de contratos. Mas é certo que essa possibilidade não é ampla e genérica, mas restrita a situações pontuais em que efetivamente reste caracterizado o desequilíbrio na base objetiva do ajuste ou o efetivo impedimento material de cumprimento pelo devedor, somado, sobretudo, à boa-fé e à real necessidade dos envolvidos.
Oportuna a lição de CARLOS EDUARDO PIANOVSKI acerca dos comportamentos oportunistas, que se deve evitar e combater:
Daí porque, em regra, não há espaço no ordenamento jurídico, mesmo no âmbito da grave crise gerada pelo COVID-19, para pretensões de afastamento da mora apenas pela dificuldade subjetiva de prestar decorrente de redução de fluxo de caixa ou, ainda menos, pelo intento de não ter que recorrer a reservas financeiras ou, mesmo, obtenção de crédito.
(...)
A certeza, ou, ao menos, a forte perspectiva de uma tutela paternalista da jurisdição, mesmo em casos nos quais não se configure impossibilidade objetiva (para fins de afastamento da mora) ou efeitos graves sobre o atendimento da causa concreta do contrato, que excedam a alocação normal dos riscos entre as partes, pode ser elemento que venha a estimular o incumprimento por parte de quem tem não apenas o dever, mas as condições econômico-financeiras para o adimplemento das obrigações. (A crise do covid-19 entre boa-fé, abuso do direito e comportamentos oportunistas. Disponível em: <https://m.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/324727/a-crise-do-covid-19-entre-boa-fe-abuso-do-direito-e-comportamentos-oportunistas>. Acesso em 21/04/20).
Lembrando que os efeitos nefastos da pandemia da COVID-19 atingem todos. Numa visão holística, é justificável, razoável e conveniente a ponderação sobre a real necessidade e conveniência da revisão do ajuste, não só com amparo na força obrigatória da avença, nos princípios da liberdade de contratar e da intervenção mínima e excepcional, mas com a finalidade de se evitar um ambiente de inadimplência generalizada e insegurança jurídica que pode vir a acarretar rescisões contratuais, fechamento de estabelecimentos e, enfim, atingir a parte hipossuficiente de toda essa relação jurídica: os professores e funcionários das instituições de ensino, os quais certamente merecem atenção diferenciada no atual cenário extraordinário de calamidade pública.