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Artigos e notícias
Dano moral por perda do tempo útil do consumidor
A evolução da economia e dos mercados ocasionou a predominância de um modelo capitalista por força do qual a busca pelo maior aproveitamento possível dos recursos produtivos disponíveis (máxima eficiência na obtenção de lucros) aproxima-se de práticas predatórias, antiéticas e, por vezes, ilícitas.
Em face disso, há normas limitadoras das atividades dos fornecedores de bens e serviços, como o art. 4º do Código de Defesa do Consumidor que lhes estabelece o dever de “atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo”, exigindo-lhes, ainda, que ofereçam “garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho” (art. 4º, II, “d”).
Contudo, desenhou-se linha tênue entre as práticas comerciais abusivas “aceitáveis” (que, em tese, não gerariam responsabilidade civil do fornecedor, pois seriam fonte daquilo que se notabilizou como “mero dissabor”, inerente à vida em sociedade) e aquelas reconhecidamente ilícitas (que, dada sua gravidade e extensão, dão ensejo à responsabilização civil por danos que, inclusive, podem ser até presumidos).
Veja-se, por exemplo, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que “a mera invocação de legislação municipal que estabelece tempo máximo de espera em fila de banco não é suficiente para ensejar o direito à indenização” (Quarta Turma, AgRg no AREsp 357.188/MG, DJe 09/05/18). Por esse posicionamento, o descumprimento da lei pelo fornecedor seria “escusável”, desde que desacompanhado de efetiva e excepcional situação danosa ao consumidor “que pudesse abalar a honra (...) ou causar-lhe situação de dor, sofrimento ou humilhação”.
Nessa zona cinzenta, ganha destaque a teoria do desvio produtivo (tempo desperdiçado), pela qual o fornecedor pode ser responsabilizado quando ocasionar ao consumidor perda do tempo útil, aqui entendido como bem jurídico passível de proteção do Estado (tal como ocorre, por exemplo, no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal que trata do direito fundamental à “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”).
Segundo MARCOS DESSAUNE, o desvio produtivo é o “fato ou evento danoso que se consuma quando o consumidor, sentindo-se prejudicado, gasta o seu tempo vital – que é um recurso produtivo – e se desvia das suas atividades cotidianas, que geralmente são existenciais” para resolver um problema de consumo criado pelo fornecedor, decorrente de produto ou serviço com vício ou defeito. Nessa situação, o consumidor “por sua condição de vulnerabilidade, despende então uma parcela do seu tempo, adia ou suprime algumas de suas atividades planejadas ou desejadas, desvia as suas competências dessas atividades e, muitas vezes, assume deveres operacionais e custos materiais que não são seus” (Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: uma visão geral. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, Curitiba, v. 7, n. 28, p. 63-78, dez. 2017).
Não raro o consumidor se vê compelido a despender tempo para solucionar problemas a que não deu causa, provocados por falha ou mau atendimento do fornecedor – cita-se, a título meramente ilustrativo: enfrentar fila ou aguardar atendimento injustificadamente demorados; cancelar um serviço não contratado ou uma cobrança indevida; aguardar pela prestação de serviço atrasada. Nessas situações, o tempo irreversivelmente perdido pelo consumidor (contra a vontade deste) tem sido considerado como merecedor de reparação civil, sobretudo por conta dos presumidos reflexos negativos no íntimo pessoal, decorrentes do indesejado desperdício do tempo que poderia ter dedicado à vida profissional, ao lazer, à convivência familiar.
Enfim, se o fornecedor (com foco na obtenção de lucro) disponibiliza no mercado de consumo um produto defeituoso ou serviço inadequado (seja por despreparo, negligência, desídia ou má-fé), que obriga o consumidor a desperdiçar seu próprio tempo e esforço para sanar os efeitos dessa falha, pode ser condenado a indenizá-lo pelo dano correspondente à perda do tempo útil.
Nesse sentido, recentemente o Superior Tribunal de Justiça condenou uma instituição bancária por danos morais coletivos, por entender, em síntese, que “o dever de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho que é atribuído aos fornecedores de produtos e serviços pelo art. 4º, II, d, do CDC, tem um conteúdo coletivo implícito, uma função social, relacionada à otimização e ao máximo aproveitamento dos recursos produtivos disponíveis na sociedade, entre eles, o tempo” e “o desrespeito voluntário das garantias legais, com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade do serviço, revela ofensa aos deveres anexos ao princípio boa-fé objetiva e configura lesão injusta e intolerável à função social da atividade produtiva e à proteção do tempo útil do consumidor” (3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, REsp nº 1.737.412/SE, DJ 08/02/19).
Obviamente, a indenização não é cabível em toda e qualquer hipótese de perda do tempo útil, mas quando a falha do fornecedor somada ao descaso deste na resolução do problema extravasam os limites da tolerância ou condescendência e invadem a esfera jurídica do consumidor, de modo a lhe causar intranquilidade e sentimento de impotência, de achincalhamento. Essa análise há de ser feita caso a caso.
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